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Eu tive um sonho horrível. Não me surpreendi muito com o sonho em si, mas me pergunto como encontrei coragem para sonhar com coisas terríveis, sendo um cidadão calmo e respeitável, um filho obediente de nossa querida e aflita mãe Sérvia, como todos os seus outros filhos. Claro, você sabe, se eu fosse uma exceção em qualquer coisa, seria diferente, mas não, meu querido amigo, faço exatamente o mesmo que todo mundo e, quanto a tomar cuidado com tudo, ninguém consegue se igualar a mim. Uma vez vi um botão brilhante do uniforme de um policial perdido na rua e observei seu brilho mágico, quase a ponto de passar, cheio de reminiscências doces; quando, de repente, minha mão começou a tremer; minha cabeça inclinou-se para a própria terra e minha boca se encheu daquele sorriso adorável que todos usamos quando cumprimentamos nossos superiores.

– Sangue nobre corre em minhas veias! – Foi o que pensei naquele momento e olhei com desdém para o bruto que passava e sem querer pisou no botão.

– Um bruto! – falei amargamente, cuspi, e depois segui em silêncio, consolado pelo pensamento de que não existem muitos tipos assim; e fiquei particularmente feliz por Deus ter me dado um coração refinado e o sangue nobre e cavalheiresco de nossos ancestrais.

Bem, agora você pode ver como sou um homem maravilhoso, nada diferente de outros cidadãos respeitáveis, e sem dúvida se perguntará como essas coisas terríveis e tolas podem aparecer nos meus sonhos.

Nada incomum aconteceu comigo naquele dia. Comi um bom jantar e depois sentei à vontade; tomando um gole do meu vinho e, depois de ter feito uso tão corajoso e consciente dos meus direitos como cidadão, fui para a cama e levei um livro comigo para dormir mais rapidamente.

O livro logo escorregou de minhas mãos, tendo, é claro, gratificado meu desejo e, com todos os meus deveres cumpridos, adormeci tão inocente quanto um cordeiro.

De repente, vi-me em uma estrada estreita e enlameada que conduzia através das montanhas. Uma noite fria e negra. O vento uiva entre galhos áridos e corta como uma navalha sempre que toca a pele nua. O céu negro, mudo e ameaçador, e a neve, como poeira, soprando nos olhos e batendo no rosto. Não havia uma alma viva em lugar nenhum. Eu corria e de vez em quando deslizava na estrada lamacenta à esquerda, à direita. Cambaleei e caí e finalmente me perdi, vagueando – Deus sabe onde – e não era uma noite curta e comum, mas parecia ter um século, e eu andava o tempo todo sem saber para onde.

Então eu caminhei durante muitos anos e fui para algum lugar, muito, muito longe do meu país natal, para uma parte desconhecida do mundo, para uma terra estranha que provavelmente ninguém conhece e que, tenho certeza, só pode ser vista em sonhos.

Percorrendo a terra, cheguei a uma cidade grande, onde muitas pessoas viviam. No grande mercado, havia uma multidão enorme, um barulho terrível acontecendo, o suficiente para estourar o tímpano. Entrei em uma pousada de frente para o mercado e perguntei ao senhorio o por quê de tantas pessoas se reunindo…

– Somos pessoas caladas e respeitáveis – ele começou sua história – somos leais e obedientes ao alcaide.

– O alcaide é a sua autoridade suprema, não é? – perguntei, interrompendo-o.

– O alcaide reina aqui e ele é nossa autoridade suprema; a polícia vem a seguir.

Eu ri.

— Está rindo? Você não sabia?… De onde você veio?

Contei a ele como tinha me perdido e que vim de uma terra distante – a Sérvia.

– Eu ouvi sobre esse país famoso! – sussurrou o senhorio para si mesmo, olhando para mim com respeito, e então ele falou em voz alta:

– É assim aqui – continuou ele – o alcaide manda aqui com seus policiais.

– Como são seus policiais?

– Bem, existem diferentes tipos de policiais – eles variam de acordo com sua classificação. Existem os mais distintos e os menos distintos… Sabemos que somos pessoas caladas e respeitáveis, mas todos os tipos de vagabundos vêm da vizinhança, eles nos corrompem e nos ensinam coisas más. Para distinguir cada um de nossos cidadãos de outras pessoas, o prefeito ordenou ontem que todos os nossos cidadãos fossem ao tribunal local, onde cada um de nós terá sua testa carimbada. É por isso que tantas pessoas se reuniram: para aconselhar-se sobre o que fazer.

Estremeci e pensei que deveria fugir dessa terra estranha o mais rápido que pudesse, porque eu, embora sérvio, não estava acostumado a uma demonstração do espírito de cavalaria e fiquei um pouco desconfortável com isso!

O proprietário riu com benevolência, me deu um tapinha no ombro e disse com orgulho:

– Estranho, isso é o suficiente para te assustar? Não é de admirar, você tem que percorrer um longo caminho para encontrar coragem como a nossa!

– E o que você pretende fazer? – perguntei timidamente.

Que pergunta ! Você verá como somos corajosos. Você tem que percorrer um longo caminho para encontrar coragem como a nossa, eu lhe digo. Você viajou por toda parte e viu o mundo, mas tenho certeza de que nunca viu heróis maiores do que nós. Vamos lá juntos. Eu tenho que me despachar.

Estávamos prestes a sair quando ouvimos, na frente da porta, o estalo de um chicote.

Eu espiei: havia uma coisa para ver – um homem com um boné brilhante de três chifres na cabeça, vestido com um terno berrante, montando nas costas de outro homem em roupas muito ricas de corte civil comum. Ele parou em frente à pousada e o cavaleiro desceu.

O proprietário saiu, curvou-se no chão, e o homem de terno berrante entrou na estalagem e foi para uma mesa especialmente decorada. O de roupas civis ficou em frente à pousada e esperou. O proprietário curvou-se para ele também.

-O que está acontecendo? – perguntei ao senhorio, profundamente intrigado.

– Bem, quem entrou na estalagem é um policial de alto escalão, e esse homem é um dos nossos cidadãos mais ilustres, muito rico e um grande patriota – sussurrou o proprietário.

– Mas por que ele deixou o outro andar de costas?

O proprietário balançou a cabeça para mim e nos afastamos. Ele me deu um sorriso desdenhoso e disse:

– Consideramos uma grande honra que raramente é merecida! – Ele me contou muitas coisas além disso, mas eu estava tão empolgado que não consegui entender. Mas ouvi muito claramente o que ele disse no final: – É um serviço ao país que todas as nações ainda não aprenderam a apreciar!

Chegamos à reunião e a eleição do presidente já estava em andamento.

O primeiro grupo colocou um homem chamado Kolb, se bem me lembro do nome, como candidato à presidência; o segundo grupo queria Talb, e o terceiro tinha seu próprio candidato.

Houve uma confusão assustadora; cada grupo queria empurrar seu próprio candidato.

– Penso que não temos um homem melhor que Kolb para presidir uma reunião tão importante – disse uma voz do primeiro grupo – porque todos conhecemos tão bem suas virtudes como cidadão e sua grande coragem. Eu não acho que haja alguém entre nós que possa se gabar de ter sido tão frequentemente açoitado por pessoas realmente importantes…

– Quem é você para falar sobre isso? – gritou alguém do segundo grupo. – Você nunca foi açoitado funcionário da polícia júnior!

– Sabemos quais são suas virtudes – gritou alguém do terceiro grupo. – Você não poderia sofrer um único golpe do chicote sem uivar!

– Vamos esclarecer isso, irmãos! – começou Kolb. – É verdade que pessoas eminentes estavam às minhas costas há dez anos; eles me açoitaram e eu nunca gritei, mas pode ser que haja mais merecedores entre nós. Talvez haja jovens melhores.

– Não, não – gritaram seus apoiadores.

– Não queremos ouvir sobre honras desatualizadas! Faz dez anos que Kolb foi açoitado – gritaram as vozes do segundo grupo.

– Sangue jovem está tomando conta, deixem os cães velhos mastigarem ossos velhos – disseram alguns do terceiro grupo.

De repente não houve mais barulho; as pessoas recuaram, da esquerda e direita, para abrir caminho e vi um jovem de cerca de trinta anos. Quando ele se aproximou, todas as cabeças se curvaram.

– Quem é? – sussurrei para o meu senhorio.

– Ele é o líder popular. Um jovem, mas muito promissor. Nos seus primeiros dias, pôde se orgulhar de ter carregado o alcaide três vezes. Ele é mais popular do que qualquer outra pessoa.

– Eles talvez o elejam? – perguntei.

– Isso é mais do que certo, porque, como todos os outros candidatos – todos são mais velhos, o tempo os ultrapassou, enquanto o alcaide estava às costas dele ontem mesmo.

Qual é o nome dele?’

– Kleard.

Eles deram a ele um lugar de honra.

– Eu acho – a voz de Kolb quebrou o silêncio -, que não podemos encontrar um homem melhor para essa posição do que Kleard. Ele é jovem, mas nenhum de nós mais velhos é igual a ele.

– Isso mesmo! Viva Kleard!… – todas as vozes rugiram.

Kolb e Talb o levaram ao lugar do presidente. Todo mundo fez uma profunda reverência e houve um silêncio absoluto.

– Obrigado, irmãos, por sua alta consideração e esta honra que vocês me concederam por unanimidade. Suas esperanças, que agora estão comigo, são muito lisonjeiras. Não é fácil dirigir o navio dos desejos da nação em dias tão importantes, mas farei tudo o que estiver ao meu alcance para justificar sua confiança, representar honestamente sua opinião e merecer sua alta consideração por mim. Obrigado, meus irmãos, por me eleger.

– Viva! Viva! Viva! – eleitores trovejaram de todos os lados.

– E agora, irmãos, espero que me permitam dizer algumas palavras sobre este importante evento. Não é fácil sofrer tantas dores, tormentos que nos aguardam; não é fácil ter a testa marcada com ferro quente. De fato, não – são dores que nem todos os homens podem suportar. Que os covardes tremam, que se encolham de medo, mas não devemos esquecer por um momento que somos filhos de bravos antepassados, que sangue nobre corre em nossas veias, sangue heróico de nossos avós, grandes cavaleiros que costumavam morrer sem fechar as pálpebras; pela liberdade e pelo bem de todos nós, sua descendência. Nosso sofrimento é leve, se você pensar no sofrimento deles – devemos nos comportar como membros de uma raça degenerada e covarde agora que estamos vivendo melhor do que nunca? Todo verdadeiro patriota, todo mundo que não quer envergonhar nossa nação diante de todo o mundo, suportará a dor como um homem e um herói.

– Isso mesmo! Viva Kleard!

Houveram vários gritos fervorosos depois de Kleard; eles encorajaram as pessoas assustadas e repetiram mais ou menos o que Kleard havia dito.

Então, um velho pálido e cansado, de rosto enrugado, cabelos e barba branca como a neve, pediu para falar. Os joelhos tremiam com a idade, as mãos trêmulas e as costas dobradas. Sua voz tremia, seus olhos brilhavam com lágrimas.

– Crianças – começou ele, com lágrimas escorrendo pelas bochechas brancas e enrugadas e caindo sobre a barba branca. – Não me sinto bem e morrerei em breve, mas parece-me que é melhor vocês não permitirem que tanta vergonha lhe aconteça.. Tenho cem anos e vivi toda a minha vida sem isso!… Por que o selo da escravidão deveria estar impresso na minha cabeça branca e cansada agora?…

– Abaixo aquele velho patife! – gritou o presidente.

– Abaixo ele! – outros gritaram.

– O velho covarde!

– Em vez de incentivar os jovens, ele está assustando todo mundo!

– Ele deveria ter vergonha de seus cabelos grisalhos! Ele viveu o suficiente e ainda pode se assustar – nós, jovens, somos mais corajosos…

– Abaixo o covarde!

– Tirem ele daí!

Fora com ele!

Uma multidão enfurecida de jovens patriotas corajosos avançou sobre o velho e começou a empurrá-lo, puxá-lo e chutá-lo com raiva.

Eles finalmente o deixaram ir por causa de sua idade – caso contrário, o teriam apedrejado vivo.

Todos eles se comprometeram a ser corajosos de manhã e a mostrar-se dignos da honra e da glória de sua nação.

As pessoas foram embora da reunião em excelente ordem. Como estavam se separando, podia-se ouvir:

– Amanhã veremos quem é quem!

– Nós vamos resolver os boatos amanhã!

– Chegou a hora de os dignos se distinguirem dos indignos, de modo que todo patife não será capaz de vangloriar-se de um coração valente!

Voltei para a pousada.

– Você viu do que somos feitos? – meu senhorio me perguntou com orgulho.

– De fato eu tenho – respondi automaticamente, sentindo que minha força havia me abandonado e que minha cabeça estava zumbindo com impressões estranhas.

Naquele mesmo dia, li no jornal deles um artigo importante, que dizia o seguinte:

Cidadãos, é hora de parar com os vaidosos e arrogantes entre nós; é hora de parar de estimar as palavras vazias que usamos em profusão para mostrar nossas virtudes e desertos imaginários. Chegou a hora, cidadãos, de pôr à prova nossas palavras e mostrar quem é realmente digno e quem não é! Mas acreditamos que não haverá covardes vergonhosos entre nós que precisarão ser levados à força para o local de marca designado. Cada um de nós que sente em suas veias uma gota do sangue nobre de nossos ancestrais lutará para ser um dos primeiros a suportar a dor e a angústia, com orgulho e em silêncio, pois isso é dor santa, é um sacrifício pelo bem de todos. nosso país e para o bem-estar de todos nós. Avante, cidadãos, pois amanhã é o dia da nobre prova!…

Meu senhorio foi para a cama naquele dia logo após a reunião, a fim de chegar o mais cedo possível ao local designado no dia seguinte. Muitos, no entanto, foram direto para a prefeitura para ficar o mais próximo possível do início da fila.

No dia seguinte, eu também fui à prefeitura. Todo mundo estava lá – jovens e velhos, homens e mulheres. Algumas mães traziam seus bebês nos braços para que pudessem ser marcados com o selo da escravidão, ou seja, de honra, e assim obter maior direito a altos cargos no serviço público.

Houve pressão e palavrões (são parecidos com os sérvios, e de alguma forma fiquei feliz com isso), e todo mundo se esforçou para ser o primeiro a entrar. Alguns estavam até pegando outros pela garganta.

Os selos foram marcados por um funcionário público especial, em um traje formal branco, que censurava levemente o povo:

– Não murmurem, pelo amor de Deus, a vez de todos chegará – Vocês não são animais, suponho que possamos lidar sem empurrar.

A marca começou. Um gritou, outro apenas gemeu, mas ninguém foi capaz de aguentar sem um som enquanto eu estivesse lá.

Eu não aguentava assistir a essa tortura por muito tempo, então voltei para a pousada, mas alguns deles já estavam lá, comendo e bebendo.

– Acabou! – disse um deles.

– Bem, nós realmente não gritamos, mas Talb estava zurrando como um burro!… – disse outro.

– Você vê como é o seu Talb e queria tê-lo como presidente da reunião ontem.

– Ah, nunca se sabe!

Eles conversaram, gemendo de dor e se contorcendo, mas tentando esconder um do outro, pois cada um deles tinha vergonha de ser considerado um covarde.

Kleard se desgraçou, porque ele gemeu, e um homem chamado Lear era um herói, porque ele pediu para ter dois selos carimbados na testa e não emitiu um som de dor. Toda a cidade estava falando com o maior respeito por ele.

Algumas pessoas fugiram, mas foram desprezadas por todos.

Depois de alguns dias, aquele com dois selos na testa andava com a cabeça erguida, com dignidade e auto-estima, cheio de glória e orgulho, e onde quer que fosse, todo mundo se curvava e tirava o chapéu para saudar o herói do dia.

Homens, mulheres e crianças correram atrás dele na rua para ver o melhor homem da nação. Onde quer que fosse, sussurros inspirados em reverência o seguiam: ‘Lear, Lear!… „É ele. Esse é o herói que não uivou, que não emitiu som enquanto dois selos estavam sendo carimbados na testa! Ele estava nas manchetes dos jornais, elogiado e glorificado.

E ele mereceu o amor do povo.

Em todo lugar, ouço esses elogios e começo a sentir o sangue sérvio antigo e nobre correndo em minhas veias. Nossos ancestrais eram heróis, morreram empalados em apostas pela liberdade; nós também temos nosso passado heróico e nossa Kosovo. Eu me emociono com orgulho e vaidade nacional, ansioso para mostrar como minha raça é corajosa e tive vontade de correr para a Prefeitura e gritar:

– Por que você elogia seu Lear?… Você nunca viu verdadeiros heróis! Venha e veja você mesmo como é o sangue sérvio nobre! Marque dez selos na minha cabeça, não apenas dois!

O funcionário do terno branco trouxe seu carimbo perto da minha testa, e eu comecei… Eu acordei do meu sonho.

Esfreguei minha testa com medo e me virei, imaginando as coisas estranhas que aparecem nos sonhos.

– Quase ofusquei a glória do Lear deles – pensei e, satisfeito, virei, e lamentava de alguma forma que meu sonho não tivesse chegado ao fim.

 

Em Belgrado, 1899
Para o projeto “Radoje Domanović” traduzido por Thais Coelho, revisado por Jelena Veljković, 2020

Raciocínio de um boi sérvio comum

Muitas maravilhas ocorrem neste mundo, e nosso país está, como muitos dizem, transbordando de maravilhas a tal ponto que maravilhas não são mais maravilhas. Há pessoas aqui em posições muito altas que nem pensam, e como compensação, ou talvez por outras razões, o boi de um camponês comum, que não difere nem um pouco dos outros bois sérvios, começou a pensar. Deus sabe o que aconteceu que fez com que esse engenhoso animal se atrevesse a se engajar em um empreendimento tão impetuoso, especialmente porque havia sido provado que na Sérvia essa ocupação infeliz só poderia lhe trazer desserviço. Digamos então que esse pobre diabo, em toda a sua ingenuidade, nem sabia que esse empreendimento não é lucrativo em sua terra natal, por isso não lhe atribuímos nenhuma coragem cívica em particular. Mas ainda permanece um mistério o por quê de um boi pensar, já que não é eleitor, nem vereador, nem vereador da aldeia, nem foi eleito deputado em qualquer assembleia bovina, ou mesmo (se atingiu uma certa idade) um senador. E se a pobre alma já sonhou em se tornar um ministro de estado em qualquer país bovino, ele deveria saber que, pelo contrário, deveria praticar como pensar o mínimo possível, como aqueles excelentes ministros em alguns países mais felizes, embora nosso país também não tenha a mesma sorte. No final, por que deveríamos nos preocupar com o por quê de um boi na Sérvia ter se engajado em um empreendimento abandonado pelo povo? Além disso, pode ter acontecido que ele começou a pensar apenas devido a algum instinto natural dele.

Então, que tipo de boi é esse? Um boi comum que, como a zoologia nos ensina, uma cabeça, corpo e membros, como todos os outros bois; ele puxa um carrinho, pasta na grama, lambe sal, rumina e zurra. O nome dele é Cinzento.

Aqui está quando é que ele começou a pensar. Um dia, seu mestre colocou no carrinho ele e seu amigo, Preto, carregou alguns piquetes roubados no carrinho e os levou à cidade para vender. Quase imediatamente depois de entrar na cidade, ele vendeu os piquetes e depois desamarrou Cinzento e seu camarada, prendeu a corrente que os amarra ao jugo, jogou um maço de feno na frente deles e alegremente entrou numa pequena taberna para se refrescar com um algumas bebidas. Havia um festival em andamento na cidade, e havia homens, mulheres e crianças passando por todos os lados. Preto, também conhecido por outros bois como sendo um tanto idiota, não olhou para nada; em vez disso, comeu o almoço com toda a seriedade, comeu de barriga para baixo, tirou um pouco por puro prazer e depois deitou-se, cochilando docemente e ruminando. Todas aquelas pessoas que passavam não eram da sua conta. Ele estava apenas cochilando e ruminando pacificamente (é uma pena que ele não seja humano, com todas essas predisposições para uma carreira nobre). Mas Cinzento não deu uma única mordida. Seus olhos sonhadores e a expressão triste no seu rosto mostraram à primeira vista que este era um pensador e uma alma doce e impressionável. Os Sérvios passavam por ele, orgulhosas de seu passado glorioso, seu nome, sua nação, e esse orgulho se manifesta em seu comportamento e ritmo severos. Cinzento observou tudo isso, e sua alma foi subitamente consumida por tristeza e dor devido à tremenda injustiça, e ele não pôde deixar de sucumbir a uma emoção tão forte, repentina e poderosa; ele gemeu tristemente, dolorosamente, lágrimas rolando em seus olhos. E em sua imensa dor, Cinzento começou a pensar:

– De que estão tão orgulhosos o meu mestre e seus compatriotas, os Sérvios? Por que eles mantêm a cabeça tão alta e olham para o meu povo com orgulho e desprezo altivos? Eles estão orgulhosos de sua pátria, orgulhosos que o destino misericordioso lhes garantiu que nasceram aqui na Sérvia. Minha mãe também me deu nascimento aqui na Sérvia, e a Sérvia não é apenas minha terra natal, mas também meu pai, e meus ancestrais, assim como os deles, todos juntos, vieram para essas terras da antiga terra eslava. E, no entanto, nenhum de nós, bois, sentimos orgulho disso, apenas nos orgulhamos de nossa capacidade de puxar uma carga mais pesada para cima; até hoje, nunca um boi disse a um boi alemão: “O que você quer de mim, eu sou um boi sérvio, minha terra natal é o orgulhoso país da Sérvia, todos os meus ancestrais foram paridos aqui e aqui nesta terra, estão os túmulos dos meus antepassados.” Deus permita, nunca nos orgulhamos disso, nunca veio à nossa mente, e eles até se orgulham disso. Gente estranha!

Tomado por esses pensamentos, o boi tristemente balançou a cabeça, o sino no pescoço tocando e o jugo estalando. Preto abriu os olhos, olhou para o amigo e lamentou:

– Lá vai você de novo com essa sua bobagem! Coma, tolo, engorde um pouco, olhe todas as costelas para fora; se fosse bom pensar, os homens não teriam deixado para nós bois. De jeito nenhum teríamos sido tão afortunados!

Cinzento olhou com pena para o camarada, desviou a cabeça e mergulhou em seus pensamentos.

– Eles se orgulham de seu passado glorioso. Eles têm sua Batalha do Kosovo. Grande coisa, meus ancestrais não puxaram carroças com comida e armamentos? Se não fosse por nós, as pessoas teriam que fazer isso sozinhas. Depois, há a revolta contra os turcos. Uma jornada tão grandiosa e nobre, mas quem estava lá na época? Foram esses idiotas de nariz alto, se levantando orgulhosamente diante de mim como se fosse o mérito deles, quem levantou a revolta? Aqui, tome meu mestre como um exemplo. Ele também está tão orgulhoso e se vangloria do levante, especialmente com o fato de seu bisavô ter morrido na guerra de libertação como um verdadeiro herói. E esse é o mérito do meu mestre? Seu bisavô tinha o direito de se orgulhar, mas não ele; seu bisavô morreu para que meu mestre, seu descendente, pudesse ficar livre. Então ele é livre, e como ele usa sua liberdade? Ele rouba os piquetes de outras pessoas, senta-se no carrinho, e eu tenho que puxar ele e os piquetes enquanto ele dorme nas rédeas. Agora ele vendeu seus piquetes, ele está bebendo licor, sem fazer nada e se orgulhando de seu passado glorioso. E quantos dos meus antepassados foram massacrados no levante para alimentar os combatentes? E meus ancestrais na época não puxaram armamentos, canhões, comida, munição? E, no entanto, não nos orgulhamos de seus méritos porque não mudamos; ainda cumprimos nosso dever hoje, assim como nossos ancestrais fizeram, pacientemente e conscientemente.

– Eles têm orgulho do sofrimento de seus ancestrais e dos quinhentos anos de escravidão. Meus parentes sofreram ao longo de nossa existência, e hoje ainda sofremos e somos escravizados, e ainda assim não gritamos sobre isso no topo de nossas vozes. Dizem que os turcos os torturaram, massacraram e empalaram; bem, meus ancestrais foram massacrados por sérvios e turcos, assados e submetidos a todos os tipos de tortura.

– Eles têm orgulho de sua religião e, no entanto, não acreditam em nada. Qual é a minha falha e de meu povo que não podemos ser aceitos entre os cristãos? A religião deles diz “não furtarás” e lá está o meu mestre roubando e bebendo pelo dinheiro que recebeu por roubar. A religião deles os instrui a amar os vizinhos e, no entanto, eles apenas prejudicam um ao outro. Para eles, o melhor dos homens, um exemplo de virtude, é aquele que não faz mal e, é claro, ninguém considera pedir a alguém que faça algo de bom também, além de não fazer mal. É o quão baixo eles têm que seus exemplos de virtude não representam mais do que qualquer item inútil que não cause danos.

O boi suspirou tão profundamente que seu suspiro levantou a poeira da estrada.

– Então – o boi continuou com seus pensamentos tristes – nesse caso, eu e minha família não somos melhores nisso do que eles? Nunca matei ninguém, nunca falei mal de ninguém ninguém, não roubei nada, nunca despedi um homem inocente do serviço público, não fiz déficit no tesouro do estado, não declarei falência falsa, nunca acorrentei ou prendi pessoas inocentes, nunca caluniei meus amigos, nunca fui contra os meus princípios de boi, não fiz testemunhos falsos, nunca fui ministro de Estado e nunca fiz mal ao país, e não apenas eu não faça mal a ninguém, até faço bem àqueles que me prejudicam. Minha mãe me deu à luz e, imediatamente, homens maus até tiraram o leite da minha mãe. Deus pelo menos criou grama para nós, bois, e não para os homens, e ainda assim eles nos privam dela. Ainda assim, além de toda essa surra, puxamos as carroças dos homens, lavramos seus campos e alimentamos pão. E ainda assim ninguém admite nossos méritos que fazemos pela pátria…

– Ou tome o jejum como exemplo; bem, para os homens, a religião diz para jejuar em todos os dias de festa, e mesmo assim eles não estão dispostos a suportar esse pequeno jejum, enquanto eu e meu povo jejuamos por toda a vida, desde que somos retirados do seio da mãe.

O boi abaixou a cabeça como se estivesse preocupado, depois a ergueu novamente, bufou com raiva, e parecia que algo importante estava voltando para ele, atormentando-o; de repente, ele gemeu alegremente:

– Oh, eu sei agora, tem que ser isso – e ele continuou pensando – é isso que é; eles se orgulham de sua liberdade e direitos civis. Eu preciso colocar minha mente nisso a sério.

E ele estava pensando, pensando, mas não conseguiu perceber.

– Quais são esses direitos deles? Se a polícia ordena que eles votem, eles votam, e assim, podemos facilmente dizer: “A favoo-o-or!” E, se não receberem ordem, não ousam votar ou até se envolver em política, assim como nós. Eles também sofrem espancamentos na prisão, mesmo que completamente inocentes. Pelo menos zurramos e agitamos nossas caudas, e elas nem têm essa pouca coragem cívica.

E naquele momento, seu mestre saiu da taberna. Bêbado, cambaleante, olhos embaçados, murmurando algumas palavras incompreensíveis, ele caminhou sinuosamente em direção ao carrinho.

– Veja só, como esse descendente orgulhoso está usando a liberdade conquistada com o sangue de seus ancestrais? Certo, meu mestre é um bêbado e um ladrão, mas como os outros usam essa liberdade? Apenas ficam ociosos e se orgulham do passado e do mérito de seus ancestrais, nos quais eles têm tanta contribuição quanto eu. Somos bois, mas ainda podemos nos orgulhar de nosso árduo trabalho e mérito hoje.

O boi suspirou profundamente e preparou o pescoço para o jugo.

 

Em Belgrado, 1902
Para o projeto “Radoje Domanović” traduzido por Thais Coelho, revisado por Jelena Veljković, 2020